José Saramago - O cão das lágrimas - in "Ensaio sobre a Cegueira"

“Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele. Quando enfim levantou os olhos, mil vezes louvado seja o deus das encruzilhadas…” (página 226)

“(…) só o cão que tinha bebido as lágrimas acompanhou quem as chorara (…) (página 227)

“O cão das lágrimas apareceu na varanda, desassossegado, mas agora não havia choros para enxugar, o desespero era todo dentro, os olhos estavam secos.” (página 260)

“Os cães têm, como se sabe, além do que chamamos instinto, outros meios de orientação, é certo que, por serem míopes, não se fiam muito da vista, porém, como levam o nariz bem à frente dos olhos, chegam sempre aonde querem” (…) (página 272)

(…) "O cão das lágrimas aproxima-se, mas a morte intimida-o, ainda dá dois passos, de súbito o pêlo encrespou-se-lhe, um uivo lacerante saiu-lhe da garganta, o mal deste cão foi ter-se chegado tanto aos humanos, vai acabar por sofrer como eles.” (página 295)

Nota 1: José Saramago – Ensaio sobre a Cegueira – Ed. Caminho – O Campo da Palavra – Lisboa 1995

Nota 2: O “deus das encruzilhadas” coloca-nos frequentemente em cruzamentos complexos, com muitas entradas e inúmeras saídas, relativamente aos quais precisamos de tomar decisões. Assim tipo entradas e saídas de carro na rotunda do marquês de pombal. As encruzilhadas podem fazer-nos chorar. Podemos chorar para fora e deixar correr as lágrimas. Por vezes choramos para dentro e ninguém vê. Há cães que, pelo seu conhecimento do outro, são capazes de sentir qualquer choro. Há cães que lambem lágrimas que correm para fora e que antecipam, lambendo, lágrimas que correm para dentro. Genialmente, José Saramago, exprime esta competência com a complexidade e simultânea simplicidade do seu pensamento sobre a vida. Os animais podem ser símbolos, podem ser companheiros de viagem. Partilham a vida e o percurso sobre a terra que os homens e as mulheres vêm efectuando.

Nota 3: Graffitti representando José Saramago e Pilar del Rio numa parede do Campo das Cebolas perto da Casa dos Bicos.