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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Miguel Torga - Dois Poemas sobre a Vida e a Natureza das Coisas Simples


Bucólica

A vida é feita de nadas
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas pelo vento;

De casas de moradia
Caídas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.





Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.

E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...



Nota 1: Miguel Torga nasceu em São Martinho de Anta em 1907 e faleceu em Coimbra em 1995.

Nota 2: Estes dois poeminhas guardam grandes segredos de sabedoria sobre as coisas da vida, como aliás tudo o que o autor escreveu. Mesmo para quem vive a sua vida numa grande cidade, a simplicidade e naturalidade dos factos da natureza, os acontecimentos da vida nas aldeias e nos campos,  a passagem do tempo e a atmosfera da terra maternizam os urbanos. O som do vento, as noites de estrelas, as searas extensas, as actividades humanas intimamente relacionadas com o tempo e a natureza das estações, os sons que enchem o espaço, os animais que se encontram nos percursos, o cheiro da terra, o nascer e o pôr do sol, as folhas e as flores... tanta coisa... o uivo longínquo do lobo, as colmeias, as borboletas e as libélulas, o coaxar das rãs nos charcos, os olhos brilhantes dos animais no escuro da noite, o frio intenso do inverno e as brasas nas lareiras, o calor intenso do verão, a imersão no espaço e no tempo e a sua proximidade com a vida e a realidade da sua complexidade e simplicidade simultâneas. A vida nas metrópoles obscurece a realidade das coisas. Transmuta-a e torna os factos enganosos. Nascer, viver e morrer nas cidades, perdendo o contacto com os campos e a natureza é um empobrecimento intelectual, sensorial e afectivo. Seja em que fase da vida for.

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