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segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Os Olhos



O deus das encruzilhadas, em joint venture com a nossa senhora das coisas impossíveis coloca, a cada momento, os seres humanos em situações limite.



Criam sinapses, misturam-lhe cultura, moral, interditos, repressões, desejos, interesses, estatuto e poder e no topo, como uma imensa guirlanda, a religião e o seu amante pecado (estes dois andam sempre de mãos dadas, como dois eternos namorados, as culturas e as épocas bem podem passar, que estes dois não desgrudam...amarrados um ao outro até que o sol se transmute numa gigante amarela que tudo devorará, para bem desta desditosa espécie).



En passant diga-se, em abono da verdade, que as divindades referidas, são elas próprias criações das ditas sinapses e da sua interacção com o mundo e a sua inexplicabilidade.

Mas eu quero é falar dos olhos. Os olhos são  dois globos (- salvo seja - muito brilhantes, com um círculo branco (esclerótica)  a envolver uma circunferência colorida (íris) . O olho possui muitas estruturas, umas que servem de protecção e outras que possibilitam a vida do olho e a visão: a conjuntiva, a córnea, a pupila, o esfincter da pupila, o cristalino, o músculo ciliar, a retina, os nervos, a circulação sanguíne, o humor vítreo, as câmaras frontais e dorsais, as glândulas  lacrimais, as pálpebras e as pestanas. O nervo óptico e o cortex visual e ainda outras estruturas anatómicas permitem que o cérebro crie imagens.




Claro que não é preciso ver para criar imagens! As imagens mentais são compósitas. São o resultado da interacção entre o indivíduo e o mundo e todo o seu corpo se encontra envolvido neste processo. Quando se fala em imagem, a associação a percepção visual é imediata. Mas a imagem é composta por dados provenientes de muitas "percepções", de intuições, de criatividade, de elaboração mental. De qualquer modo os olhos vêem o que se lhes apresenta por fora e por dentro e é este assunto que hoje me interessa.

Numa das suas encruzilhadas, Édipo matou o pai (parricídio) e na encruzilhada seguinte casou com a mãe (incesto). Só faltou canabalizar alguém para cumprir a trilogia das máximas proibições desta espécie.

Não sabia, não viu, não quis praticar esses actos - achava ele - ao contrário de nós, que sabemos perfeitamente que ele realizou um desejo e interditou uma proibição universal arquetípica do inconsciente pessoal e colectivo que, segundo Jung, nos mantém vivos, relativamente cordatos uns em relação aos outros e possibilitou o surgimento da cultura e da vida social.

Quando se apercebeu do que não tinha visto, vazou os olhos. Quer dizer, auto-mutilou-se para se enganar a si próprio. Psicoticamente delirante imaginou que deixando de ver apaziguava os seus fantasmas e o que estes o haviam obrigado a fazer de proibido. Teve pois uma reacção psicótica aguda.



Sendo o complexo de Édipo universal então todos temos a possibilidade de, em circunstâncias particulares vazarmos os nossos olhos ou os dos outros, quando não somos capazes de aceitar, de ver, aquilo que fazemos, que fizemos ou que teríamos todo o gosto em fazer.



Quer dizer mutilações e auto-mutilações são consequências morais delirantes, fantasistas e bizarras de libertação e de redenção. São formas extremas de exorcizar fantasmas, medos, culpas e outras moralidades adjacentes.

Posto isto, falemos então dos olhos noutra perspectiva, quiçá mais romântica e apelativa para os eventuais leitores deste blogue.

Os olhos encontram-se associados a tudo e mais alguma coisa, quer no aspecto simbólico que assumem, quer nos significados e associações a crenças, religiões, psicologia, comportamentos e sentimentos, literatura e afectos. Tudo...mas mesmo tudo... pode envolver simbolicamente os olhos, o olhar e a visão.



O olho como possibilidade de ver e olhar é apenas uma das inúmeras manifestações que lhe estão cultural e psicologicamente associadas. Os olhos são a parte mais simbólica do corpo. Enfim, os órgãos genitais e os seios também o são, mas são menos ricos do ponto de vista da simbologia dos sentimentos, da inteligência e da criação de contactos e relações entre humanos e entre estes e a natureza e o mundo físico.



 O olho de Buda, azul e imenso sobre as stupas dos templos no Nepal; o olho de Isís  no Egipto - o sol como um enorme olho que tudo ilumina e perscruta; o olho no centro da testa, o terceiro olho, com acesso directo aos sentimentos e à consciência, à clarividência que os outros dois por si só não possibilitam. Até organizações secretas recorrem ao olho como elemento emblemática nas suas insígnias.

A cor dos olhos, o olhar, têm sido frequentemente cantados. Eis alguns exemplos:

Olhos Castanhos ( Alves Coelho)

Teus olhos castanhos
de encantos tamanhos
são pecados meus,
são estrelas fulgentes,
brilhantes, luzentes,
caídas dos céus,

Teus olhos risonhos
são mundos, são sonhos,
são a minha cruz,
teus olhos castanhos
de encantos tamanhos
são raios de luz.

Olhos azuis são ciúme
e nada valem para mim,
Olhos negros são queixume
de uma tristeza sem fim,
olhos verdes são traição
são crueis como punhais,
olhos bons com coração
os teus, castanhos leais.

Pois é: Os olhos castanhos para quem escreveu este poema são os ideais. Os olhos de outras cores podem ser excessivamente tristes, ciumentos ou traiçoeiros. Só a sua cor já transmite o que a pessoa é! Estranho, como se podem inferir tais sentimentos a partir da cor da íris. 

Blue eyes (Gary Osborne)


Baby's got blue eyes
Like a deep blue sea
On a blue blue day
Blue eyes

Baby's got blue eyes
When the morning comes
I'll be far away
And I say
Blue eyes
Holding back the tears
Holding back the pain
Baby's got blue eyes
And she's alone again
Blue eyes


Baby's got blue eyes
Like a clear blue sky
Watching over me
Blue eyes
I love blue eyes
When I'm by her side


Where I long to be
I will see
Blue eyes laughing in the sun
Laughing in the rain


Baby's got blue eyes
And I am home, and I am home again

For this author, blue eyes laugh in the sun and in the rain, while for the other one they show jealousy. Well, they may laugh and at the same time be jealous!


Olhos nos olhos (Chico Buarque)

Quando você me deixou, meu bem,

Me disse pra ser feliz e passar bem.
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci,
Mas depois, como era de costume, obedeci.

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer.
Olhos nos olhos,
Quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando,
Me pego cantando, sem mais, nem por quê.
Tantas águas rolaram,
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você.

Quando talvez precisar de mim,
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim.
Olhos nos olhos,
Quero ver o que você diz.
Quero ver como suporta me ver tão feliz.

Para o Chico, como para muita gente, as verdades só se validam quando são ditas olhos nos olhos. É de desconfiar de afirmações proferidas por quem nos olha de soslaio? Uma frase é credível se olharmos a pessoa nos olhos e ela nos olhar a  nós e deixa de o ser noutra situação? O que é que os olhos, como linguagem corporal têm a ver com a verdade ou falsidade de uma afirmação?
 

Se eu fosse um dia o teu olhar (Pedro Abrunhosa)

Frio

O mar
Por entre o corpo
Fraco de lutar
Quente,
O chão
Onde te estendo
Onde te levo a razão.
Longa a noite
E só o sol

Quebra o silêncio,
Madrugada de cristal.
Leve, lento, nu, fiel
E este vento
Que te navega na pele.
Pede-me a paz

Dou-te o mundo
Louco, livre assim sou eu
(Um pouco +...)
Solta-te a voz lá do fundo,
Grita, mostra-me a cor do céu.

Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém.
Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém.

Sangue,
Ardente,
Fermenta e torna aos
Dedos de papel.
Luz,
Dormente,
Suavemente pinta o teu rosto a
pincel.
Largo a espera,
E sigo o sul,
Perco a quimera
Meu anjo azul.
Fica, forte, sê amada,
Quero que saibas
Que ainda não te disse nada.
Pede-me a paz
Dou-te o mundo
Louco, livre assim sou eu
(Um pouco +...)
Solta-te a voz lá do fundo,
Grita, mostra-me a cor do céu.

O poeta agora quer ser o olhar da coisa amada, quer dizer, ver o mundo pelos seus olhos. Há neste desidério um certo desejo de transformação do amador na coisa amada. Uma descorporização e unificação com o outro através do olhar e do corpo. De facto se há aspecto em que os limites do corpo deixam de existir é através dos sentidos, em particular do que a pessoa vê. Ver com os olhos do outro é ser espiritualmente o outro. Não é um processo de espelho mas de introjecção. O poeta valoriza assim uma "folie à deux" em que os amantes se fundem um no outro.

Como tudo começou (Rui bandeira)

Quem me vai dizer como é que tudo começou

A minha vida já não faz sentido agora
Sei, não vai haver nenhuma forma de te ver
Sem eu saber porque razão te foste embora


E sem querer fazer te mal,
nunca soube ser igual ao que tu imaginavas para ti
Dá-me a tua mão não mintas mais
Olha que os teus olhos são cristais

Por favor não digas que não sais
Porque eu sei sempre onde tu vais
Já não há razão para viver sem a paixão
Que me atormenta e persegue a toda a hora
Pois sem querer fiz tanto mal,
nunca soube ser igual ao que tu imaginavas para ti

Dá-me a tua mão não mintas mais
Olha que os teus olhos são cristais
Por favor não digas que não sais
Porque eu sei sempre onde tu vais

Neste caso os olhos são cristais e reflectem a mentira com grande clareza. Quem quer mentir e não o dar a conhecer deve usar óculos escuros, mas mesmo assim, esse facto, de per se, já indicia que a pessoa está a esconder os cristais e como tal a mentira. É estranho: aquilo que brilha seduz. Pelo menos no caso de algumas aves, por exemplo as pegas. Para o Rui, os olhos da coisa amada tudo divulgam, em particular as mentiras.




Bette Davis Eyes (Donna Weiss, Jackie DeShannon)

Her hair is Harlow gold,

Her lips sweet surprise
Her hands are never cold
She's got Bette Davis eyes
She'll turn her music on
You won't have to think twice
She's pure as New York snow
She got Bette Davis eyes

And she'll tease you
She'll unease you
All the better just to please you
She's precocious
And she knows just what it
Takes to make a pro blush
She got Greta Garbo Stand off sighs,
She's got Bette Davis eyes


She'll let you take her home
It whets her appetite
She'll lay you on her throne
She got Bette Davis eyes
She'll take a tumble on you
Roll you like you were dice
Until you come out blue
She's got Bette Davis eyes

She'll expose you
When she snows you
Off your feet with the crumbs she throws you
She's ferocious
And she knows just what it
Takes to make a pro blush
All the boys think she's a spy,
She's got Bette Davis eyes

And she'll tease you
She'll unease you
All the better just to please you
She's precocious
And she knows just what it
Takes to make a pro blush
All the boys think she's a spy,
She's got Bette Davis eyes

She'll tease you
She'll unease you
Just to please you
She's got Bette Davis eyes
She'll expose you
When she snows you

Well, Bette Davies eyes were unique. I don´t think this one got her eyes, but nevermind. What she does is enough: she teases, exposes, pleases and unpleases, she is a spy, she is ferocious. All this because of her eyes.

Há muitas actividades que se podem efectuar com os olhos e com o olhar:

- Pode-se seduzir alguém e começar mesmo por despir a pessoa, logo no acto de sedução. Tirar-lhe a roupa e expô-la nua na nossa mente;

- Se a situação é menos romântica e mais de confronto, pode então ferir-se o outro com um dardo, com chamas, com flechas e eventualmente matar-se o outro. Matá-lo com o olhar. Esta morte é habitualmente precedida de outros olhares significativos que carregam raiva, ódio, chispam labaredas de violência;

- Claro que as labaredas e as chispas ocorrem também em situações amorosas, o que significa que o simbolismo da paixão e do ódio, nos olhos é suscepcível de causar confusão. Quer dizer, tudo depende do contexto;





- Olhos tristes, olhos de viúva, olhos de cão sem dono, olhos abandonados, olhos de carneiro mal morto. Nesta última situação, provavelmente os olhos estão revirados e vê-se bastante a esclerótica, estando a íris mais oculta. São olhos quase brancos;

- Os olhos dos vampiros são vermelhos e os dos gatos são amarelos e vê-se o seu brilho na escuridão da noite. Também as aves de rapina lançam holofotes nas noites escuras. Provavelmente apenas vêem, não terão outro sentido simbólico;

- Os olhos com estrabismo divergente ou convergente, vulgarmente designados por vesgos são de difícil interpretação porque não se sabe para onde é que o olhar é dirigido. Como em todos os outros lá está a ira, a raiva, o ódio, o afecto, a sedução;

- Se piscamos um olho deliberadamente é com a intenção de atrair a atenção de alguém, se o piscamos milhares de vezes involuntariamente é para manter o olho lubrificado. As pestanas, que são protecção, podem ser empecilho.

- Aquele indivíduo está olhar para mim. Que significado isto tem para uma pessoa paranóide? Que o olhar do outro o persegue, que lher quer fazer mal, que deseja algo dele?

- Até a inteligência e a curiosidade intelectual se podem ler nos olhos e nos olhares;

- Os olhos e o olhar expõem a alma e o espírito. Mas o que são estes? Como é que os olhos expõem algo que não se sabe o que é?

- E quando os olhares são turvos? Quando são maquiavélicos? Alucinados e delirantes? Olhares estranhos? O indivíduo tinha um olhar estranho: o que significa isto? Como se distingue um olhar estranho de um que não o é? E um olhar dúbio, inquisitivo, apreensivo, carinhoso, amoroso, protector? Um olhar sensível, místico? Compassivo ou desdenhoso?

- Quando se chora ou se lacrimeja, os sentimentos expressos ou subjacentes também são diversos e podem ser opostos: chora-se de alegria e ri-se por nervosimo. Lacrimeja-se não por tristeza mas para se obter a compaixão do outro. O choro e os olhares podem ser manipuladores e não corresponderem aos sentimentos que se pretendem expressar.

- Se a ira é intensa os olhos saem das órbitas, esbugalham. Como o cometa Haley em órbita na direcção do outro. No polo oposto, os olhinhos de cordeirinho, visam conduzir o outro na direcção que nos seja favorável. Utiliza-se este olhar irresistível para obter, numa interacção, algo que parece ser difícil obter de outra forma. É bem mais eficaz o uso do olhar do que da palavra.

- Quem o feio ama, bonito lhe parece. Claro que os sentimentos obnubilam a visão, perturbam-na, mascaram-na. E isso que importa? Toda a gente vê Caravaggio da mesma maneira? Ou Chagall ou Picasso ou Mondrian? Não, mas o que eles pintaram é exactamente o que está nas suas telas, mas não se reduz a cones e bastonetes.

- Há algum sentimento que não se reflicta nos olhos e no olhar?




Este assunto, pelo que se disse, é tema forte da poesia. Provavelmente a sua linguagem explica melhor a complexidade dos sentimentos envolvidos do que explicações científicas.

Deixo a seguir, para reflexão, alguns poemas sobre os olhos e o olhar:




Poema dos Olhos da Amada

Oh, minha amada

Que os olhos teus
São cais noturnos
Cheios de adeus
São docas mansas
Trilhando luzes
Que brilham longe
Longe nos breus


Oh, minha amada
Que olhos os teus
Quanto mistério
Nos olhos teus
Quantos saveiros
Quantos navios
Quantos naufrágios
Nos olhos teus

Oh, minha amada
Que olhos os teus
Se Deus houvera
Fizera-os Deus
Pois não os fizera
Quem não soubera
Que há muitas eras
Nos olhos teus

Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus

Vinicius de Moraes ( Rio de Janeiro - 1913/ Rio de Janeiro- 1980)               )





Olhos

Olhos:
brilhantes da chuva que caiu
quando Deus me mandou beber.

Olhos:
ouro, que a noite me contou nas mãos,
quando colhi urtigas
e fiz arrepender as sombras dos Provérbios.

Olhos:
noite, que sobre mim resplandeceu,
quando escancarei o portão
e atravessado pelo gelo invernoso das minhas fontes
saltei pelos lugares da eternidade.


Paul Celan  (Cernauti - Roménia 1920/ Paris - 1970 )
Tradução de João Barrento e Y. K. Centeno  

Este poeta nasceu numa zona da Roménia, agora Ucrânia e morreu em Paris e escreveu o mais belo poema sobre os olhos. Deixo-o aqui para que se extasiem com a sua pureza.





Imagens que Passais pela Retina

Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.

Camilo Pessanha (Coimbra - 1867/ Macau - 1926)   
  
O ópio faz milagres poéticos, mas o poeta tem que ajudar a droga. Para ser sincero com ópio ou sem ele, Pessanha é único. Abençoado Oriente que tais imagens lhe fixou na retina e que ele tão bem transformou em palavras. 




Seus Olhos

Seus olhos - que eu sei pintar
O que os meus olhos cegou –
Não tinham luz de brilhar,
Era chama de queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do Destino.
Divino, eterno! - e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda a alma senti...
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.

Almeida Garrett (Porto - 1799/Lisboa - 1854)
   
 


Olhos Suaves, que em Suaves Dias

Olhos suaves, que em suaves dias
Vi nos meus tantas vezes empregados;
Vista, que sobra esta alma despedias
Deleitosos farpões, no céu forjados:

Santuários de amor, luzes sombrias,
Olhos, olhos da cor de meus cuidados,
Que podeis inflamar as pedras frias,
Animar cadáveres mirrados:

Troquei-vos pelos ventos, pelos mares,
Cuja verde arrogância as nuvens toca,
Cuja horrísona voz perturba os ares:

Troquei-vos pelo mal, que me sufoca;
Troquei-vos pelos ais, pelos pesares:
Oh câmbio triste! oh deplorável troca!

Manuel Maria B. du Bocage  (Setúbal 1765 - Lisboa - 1805)

Claro que era estróina. Era. Teve uma vida vivida. Era gozão e irónico. Talvez tivesse uma síndrome de Gilles de la Tourette - dizia tantos palavrões. Não sei se teria tiques. Era pícaro e mordaz. Mas também sabia ser profundamente sagaz e romântico. Vertente muito esquecida neste incomparável génio poético.
 
 


O Teu Olhar

Passam no teu olhar nobres cortejos,
Frotas, pendões ao vento sobranceiros,
Lindos versos de antigos romanceiros,
Céus do Oriente, em brasa, como beijos,


Mares onde não cabem teus desejos;
Passam no teu olhar mundos inteiros,
Todo um povo de heróis e marinheiros,
Lanças nuas em rútilos lampejos;

Passam lendas e sonhos e milagres!
Passa a Índia, a visão do Infante em Sagres,
Em centelhas de crença e de certeza!


E ao sentir-se tão grande, ao ver-te assim,
Amor, julgo trazer dentro de mim
Um pedaço da terra portuguesa!



Florbela Espanca

Teus Olhos

Olhos do meu Amor! Infantes loiros
Que trazem os meus presos, endoidados!
Neles deixei, um dia, os meus tesoiros:
Meus anéis, minhas rendas, meus brocados.

Neles ficaram meus palácios moiros,
Meus carros de combate, destroçados,
Os meus diamantes, todos os meus oiros
Que trouxe d'Além-Mundos ignorados!

Olhos do meu Amor! Fontes... cisternas..
Enigmáticas campas medievais...
Jardins de Espanha... catedrais eternas...

Berço vinde do céu à minha porta...
Ó meu leite de núpcias irreais!...
Meu sumptuoso túmulo de morta!...


Florbela Espanca (Vila Viçosa - 1894/Matosinhos - 1930)

O delírio poético de Florbela, a rondar o insane, aliás os poetas com as suas imagens alucinam facilmente - vide Fernando Pessoa e a Saudação a Walt Whitman - é maravilhoso.  É cinemascope avant la lettre aquilo que ela vê nos olhos dos seus amores: vê momentos épicos da história nacional, vê tesouros de valor incomensurável. Bendita visionária, esta mulher! É impossível não amar esta poetisa. Tem uma poesia muito datada. Pois tem, e isso que interessa? E essa do Miguel Torga achar que Camões fazia poesia a martelo também tem a sua piada. Que homem mais rezinga este Torga. E a mania de comparar Camões com Pessoa? Que fixação sem jeito maneira. Um era só sentimento tipo pinga amor e paixão pela aventura. O outro era mais vinho e sentar a uma secretária em paixões fictícias por uma tal de Ofélia. São ambos tremendos poetas, telúricos... só a poesia de ambos faria deslizar as placas continentais. Um todo acção, outro todo ficção. Um mulheres atrás umas das outras, outro ego-distónico. Um a falar do que via. O outro a escrever sobre o que imaginava. Um factos. Outro ilusões. Não se comparem estes seres humanos, nem nenhuns outros.

Nota: Texto e fotos do Lobo - jan. 2011/ Poemas dos autores assinalados/ Fotos dos poetas retiradas da internet, presumindo-se serem públicas

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