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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O Fado





"O fado nasceu um dia
Quando o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava..."

José Régio

O Lobo tem uma relação pessoal com o fado de há longa data. Talvez do final da adolescência. Há fadistas que, à primeira nota se aninham no coração de quem os ouve, e de lá nunca mais saem. Quase toda a gente teve este insight da expressividade, afectividade e intimidade do fado ao ouvir Amália. Também foi isso que se passou comigo.

"Que estranha forma de vida
Tem este meu coração"

Amália Rodrigues

O meu gosto pelo fado começou pois ao contrário. Comecei por gostar dos poetas cantados por Amália e depois fui descobrindo fados e fadistas mais antigos ou mais recentes, já sem a preocupação exclusiva da qualidade dos poemas.

Quer dizer, aquilo que para muitos - as óperas de Amália com as melodias de Alain Oulman - significaram afastamento, para mim constituíram uma descoberta e uma aproximação a um género musical, que desde então tenho ouvido com profundo gosto... não, com paixão...é disso que se trata.

"Povo que lavas no rio
Que talhas com teu machado
As tábuas do meu caixão"

Pedro Homem de Mello

Se há música em português que dá gosto ouvir, o fado na sua melancolia, mas também na sua alegria é inegavelmente preponderante. A língua ajusta-se a esta forma de expressão musical. Noutras é muito forçada.

"Por trás do espelho quem está,
De olhos fixados nos meus?"

Luís de Macedo

 

Foi preciso atrevimento e coragem para cantar os poetas. As vacas sagradas, em particular Camões, ou os poetas galaico-portugueses, os contemporâneos como O´Neill, Vinicius de Moraes, Homem de Mello, Vasco de Lima Couto, Ary dos Santos, Cecília Meirelles e tantos, tantos outros chegaram às pessoas a partir de Amália, dos percursos que ela abriu.


"Quando o país de Abril
Se vestia de ti"

Ary dos Santos

Quem os ouviria no dia-dia? Ano após ano? Estariam emprateleirados e seriam lidos nas escolas - alguns - por estudiosos e por entusiastas. Mas não seriam conhecidos de todos e as suas palavras não ecoariam nas rádios, nos cds, nos carros, a caminho do trabalho ou em passeio de fim de semana, nas férias, enchendo coliseus e centros culturais ou nas tabernas tradicionais onde sempre foram cantados os poemas de outros tempos.

"Alma minha gentil que te partiste
Tão cedo desta vida descontente".

Luís de Camões

Agora, cantar Manuela de Freitas, Amélia Muge, Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Almada Negreiros, Lobo Antunes ou Saramago já não custa nada. A ousadia compensa e a barreira do estereótipo muito típica deste país, foi ultrapassada há muito e este é assunto que já não se discute. Que bela forma nós encontrámos de divulgar a nossa maravilhosa poesia, os nossos poemas eternos e os poetas que tanto amamos.

O caminho está aberto e tornou-se natural cantar poetas. Aliás, estranha-se que as líricas não sejam poemas, mas apenas descrições de cenários de rua, ainda que estes mantenham uma frescura que enternece.

"Foi na Travessa da Palha
Que o meu amante, um canalha,
Fez sangrar meu coração".
 
Gabriel de Oliveira


Lucília do Carmo canta este fado como ninguém. Lila Downs dá-lhe um jeitinho com muita graça. Fernando Maurício e Argentina Santos vieram de seguida. Alfredo Marceneiro veio muito antes: a sua Casa da Mariquinhas é de um swing irresistível sobre um tempo que passou.

"Na casa da Mariquinhas agora está
À janela um sujeito que é lingrinhas"

Silva Tavares/Alfredo Marceneiro

Carlos do Carmo é, desde sempre, uma descoberta. Com todo o Camané  ( Sobe-se numa corrida./ Corre-se p'rigos em vão. Adivinhaste: é a vida/ A escada sem corrimão. David Mourão Ferreira)  e outras vozes masculinas fui descobrindo João Braga, Carlos Zel, um ou outro Paulo Bragança dos tempos idos. As Madres de Goa de Gil do Carmo é um belíssimo fado.

"Lisboa menina e moça... menina,"
Da luz que os meus vêem, tão pura"

Ary dos Santos

Com Teresa Tarouca e Saudade Silêncio e Sombra, numa voz profundamente magoada, aderi, a contragosto a este estilo de poema. 

Maria Teresa de Noronha, contra tudo e contra todos, a cantar o Fado Hilário, com Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso, também com Luís Goes veio a descoberta da beleza das toadas  das baladas coimbrãs.

"Tu que andas em busca da verdade
e só encontras falsidade em cada sentimento,
Inventa, inventa amigo uma canção
que dure para além deste momento
Homem só, meu irmão."

Luís Goes


Quando a Maria da Fé ou a Cidália Moreira dizem que "o tempo pôs neve nos teus cabelos", vê-se o resultado da passagem do tempo. Quando Argentina Santos canta com Raquel Tavares, é como se o tempo não tivesse passado.

 “Meu Deus, como o tempo passa!”
dizemos de quando em quando;
afinal o tempo fica
a gente é que vai passando." 
  
João de Freitas e Filipe Pinto


Os Búzios de Ana Moura ouvem-se vezes sem conta, sempre. Contam uma história, como muita da lírica fadista. Mas sem o fatalismo a esta associado. Agora é a mulher que vai mudar a sorte do seu amor, não é o destino que o determina.

A Aldina Duarte trouxe de volta o pathos ao fado, mas agora, com uma riqueza poética que antes não tinha.

Se não fosse a Cristina Branco nunca teria conhecido a poesia de Slauerhoff e compreendido com tanta clareza como a matéria de que o fado se constrói é universal.

A Mariza, na sua voz única, canta e encanta em qualquer lugar. De certo modo, as suas semelhanças com Amália ocorrem por este facto e pelos seus longos vestidos de saias rodadas, grandes e robustas, em corpo franzino. O seu Cavaleiro Monge, por montes e vales, de Fernando Pessoa, foge e apetece ir atrás dele. A sua funesta primavera é tão boa como a original. Oh gente da minha terra, da diva Amália, cantada por ela, é o fado-arrepio.

As líricas fadistas cantam amores e desamores, mas também contam muitas estórias. Falam do fado e das suas melodias, das guitarras e das violas. Abordam  a vida do dia -a- dia nos seus diferentes contextos. Um fado é uma descrição de sentimentos ou de imagens da vida de uma cidade ou das suas gentes. As líricas do fado criam imagens... mostram-nos realidades presentes ou passadas, como se reflectidas num ecrã.

 
"Ó Julia florista
Tua linda história
O tempo marcou
Na nossa memória
Ó Júlia florista
Tua voz ecoa
Nas noites bairristas
Boémias, fadistas
Da nossa Lisboa"

Joaquim Pimentel/ Lionel Villar

 

"Era o rapaz da camisola verde
Negra madeixa ao vento
Boina marujo ao lado."

 Pedro Homem de Mello


"Perante a admiração geral
Descobriu-se o Embuçado
Era El-Rei de Portugal
Houve beija-mão real
E depois cantou-se o Fado."


 João Ferreira Rosa


"Da violeteira já ninguém hoje tem esperanças,
Deixou saudades, foi-se embora e à tardinha
Está o Chiado carregado de mil tranças
Mas tranças pretas ninguém tem como ela as tinha."

Vicente da Câmara


"Bebe um copo de sol
Um de copo sol “on the rocks”
E tem paixões siderais de Lisboa até Cascais
P’ra beber sol
O mundo inteiro é uma tasca
Onde a gente se enfrasca de manhã ao pôr do sol."

Amélia Muge


As teorias sobre a origem desta forma musical são diversas, algumas mais românticas, outras mais factuais. Não parece muito verosímil a origem afro-brasileira do fado. Parece sim que este decorre de uma tradição de canto expressivo em que trupes de artistas cantavam histórias a espectadores analfabetos. E não se encontram razões para pensar que esta forma de divertimento fosse importada. Mas a origem é pouco importante, interessa sim a preservação do seu passado e que continuemos a ouvi-lo com a paixão e a sensibilidade de sempre.


"Ora eis que embora outro dia,
quando o vento nem bulia
e o céu o mar prolongava,
à proa de outro veleiro
velava outro marinheiro
que, estando triste, cantava,
que, estando triste, cantava."



José Régio



Nota: Texto e foto do Lobo/Janeiro 2011. Excertos de poemas dos autores indicados.

Links:

Museu do Fado: http://www.museudofado.pt/
Portal do Fado: http://www.portaldofado.net/index.php?option=com_content&task=blogcategory&id=60&Itemid=152
Rádio Amália: http://www.amalia.fm/radio-online/

Ouça e veja os artistas nos links a seguir:
Amália - Fado Português - José Regio: http://www.youtube.com/watch?v=1YriVM8sC7M

Amália - Estranha Forma de Vida - Amália Rodrigues: http://www.youtube.com/watch?v=uFgctURyGp4&feature=related
Amália - Povo que lavas no rio - Pedro Homem de Mello: http://www.youtube.com/watch?v=RHYxXlQHx4M&feature=related
Amália - Cansaço - Luís de Macedo: http://www.youtube.com/watch?v=u8xbUoJecBc
 Lucília do Carmo - Foi na travessada palha - Gabriel de Oliveira: http://www.youtube.com/watch?v=X1dbEWebo5Q
Lila Downs - Foi na travessada palha - Gabriel de Oliveira: http://www.youtube.com/watch?v=qnOGhj0gj08&feature=related
Alfredo Marceneiro - A casa da Mariquinhas: http://www.youtube.com/watch?v=IoGDSd7rSMw
Camané - A escada sem corrimão - David Mourão Ferreira: http://www.youtube.com/watch?v=Qr_Yjvk6Tqc
Carlos do Carmo - Lisboa Menina e Moça- Ary dos Santos: http://www.youtube.com/watch?v=mDSvNe5VNmk
Argentina Santos - Vida vivida: http://www.youtube.com/watch?v=eTfFin8Bvo8
Mariza - Oh gente da minha terra - Amália: http://www.youtube.com/watch?v=XQrq7nLPHEw&feature=related
Amália - Júlia Florista: http://www.youtube.com/watch?v=UjjBUFWApyk&feature=related
Frei Hermano da Câmara - O rapaz da camisola verde - Pedro Homem de Mello: http://www.youtube.com/watch?v=i4raARynj0g
Vicente da Câmara - Moda das tranças pretas: http://www.youtube.com/watch?v=c7CE9523JgE
Pedro Moutinho - Copo de Sol - Amélia Muge: http://www.youtube.com/watch?v=9Qf6uYvYXXo&feature=related
Ana Moura - Os Búzios - Jorge Fernando: http://www.youtube.com/watch?v=Sa8Ucd96KWo

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