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sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Cocktail Renato & Carlos - Mistura Explosiva

Na sequência do artigo “O Jovem e o Velho”, e entrando no debate nacional que se instalou sobre a criminalidade e os aspecto psicológicos e sócio-culturais em que aquela se integra, também me interessa reflectir, neste blogue de coisas simples, sobre contextos de maior complexidade, como é o caso em apreço.

Efectuar autópsias psicológicas sem acesso directo às pessoas envolvidas e aos factos é o mesmo que efectuar perícias médico-legais sem acesso ao corpo da vítima e a informações concretas e factuais sobre os envolvidos no processo e toda a sua dinâmica.

O crime, seja ele de que natureza for, deve ser considerado como tal, sem juízos de valor sobre valores com os quais os analistas concordem ou não. Isto é, não se pode transformar uma análise sobre um acontecimento numa saga de ataque/defesa dos envolvidos e da homossexualidade em particular, ou da questão das implicações da diferença de idades nas relações afectivo-emocionais ou sexuais.

Terceiro aspecto: perturbação de identidade de género e orientação sexual não são a mesma coisa. Na perturbação da identidade de género o que está em causa é uma distonia entre o sexo biológico e o sexo psicológico: a mulher que se sente psicologicamente um homem e se sente atraída por mulheres; o homem que se sente psicologicamente uma mulher e se sente atraída por homens.

Na homossexualidade o que está em causa é o objecto de desejo e não necessariamente uma perturbação da identidade sexual, o que não significa que não possam coexistir. Mas nesta situação, a pessoa não considera sequer que o seu comportamento é homossexual porque ela não se considera a si própria como sendo do mesmo sexo do seu objecto de desejo. É mais fácil a mudança de sexo de modo a fazê-lo corresponder à identidade psicológica de género, do que proceder a terapias visando a adequação dessa identidade ao sexo biológico.

A atracção sexual por pessoas do mesmo sexo não é uma patologia. Seja ela levada a efeito, isto é, consumada em relações afectivas e sexuais com indivíduos do mesmo sexo, seja ela meramente uma situação platónica e romântica. Foi-o durante muitas épocas e noutras épocas e culturas foi socialmente aceite.

As perspectivas da saúde mental sobre esta matéria começaram a modificar-se nos inícios dos anos 70. Oficialmente deixou de ser considerada uma patologia pela Associação Americana de Psiquiatria e retirada do Manual de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais (DSM) em 1974. A Associação Americana de Psicologia seguiu o mesmo percurso e desde 1975 tem trabalhado arduamente para esbater o estigma associado à orientação sexual. A Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da sua lista de doenças em 1990.


Apesar desta reorientação científica, o lobby dos psicólogos e psiquiatras de orientação analítica conseguiram manter no Manual a perturbação ego distónica onde enquadram as pessoas que, por questões de orientação sexual, apresentam perturbações psicológicas.

Em conclusão, a orientação sexual, como qualquer aspecto da vida humana tem sido considerada de modo diverso consoante as épocas e culturas. Oficialmente determina-se o que é doença e o que não é, sobretudo no que concerne às manifestações psicológicas e comportamentais. Enfim, quer mantendo a homossexualidade na lista de doenças, quer retirando-a, trata-se de uma intromissão do modelo científico - médico/ biológico em particular na vida afectiva e sexual dos cidadãos.

Na época actual este aspecto do comportamento humano não é considerado oficialmente uma patologia, ainda que diferentes Estados e culturas respondam de modo diverso a este assunto.

Continua em muitos países a ser considerado crime a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo. Noutros, legitimou-se esse tipo de relações e possibilita-se o casamento na sua perspectiva legal, uma vez que, no contexto informal, sempre houve uniões com estas características. Enfim, quer num contexto quer noutro, trata-se de uma intromissão do Estado na vida sexual dos cidadãos. A repetição é enfática e deliberada.

Tanto num caso como noutro, na questão da patologia e na problemática do casamento, uma maioria heterossexual, decide sobre o que é saudável e o que é doença e quem casa com quem. O Estado e a ciência, o que para o objectivo em causa significam os poderes instituídos, determinam a legitimidade de certos comportamentos e não de outros, que apenas dizem respeito aos envolvidos. O lobby gay conseguiu então legitimar as relações entre pessoas do mesmo sexo e nalguns países possibilitar o casamento.

Recuperando o assunto inicial:

- o jovem em ascenção no mundo da moda, descoberto num concurso de televisão, estabelece uma relação de índole homossexual com um cronista social;

- o jovem é referido como inteligente, bom estudante, calmo, tranquilo, com relações de amizade estáveis com amigos de ambos os sexos;

- o jovem vivia com a mãe, filho de pais separados de há longa data, tendo a mãe afirmado que o jovem veria no cronista um pai substituto;

- o jovem, que tinha como objectivo de vida, utilizar a sua formação universitária na vertente do desporto ( tendo sido campeão nacional de basquetebol), descobre um mundo diferente daquele a que estava habituado;

- o jovem viaja com o cronista para diversos locais e vai progressivamente descobrindo ao longo de alguns meses os meandros de uma relação em que um tem a beleza e o poder que ela lhe confere e outro detém os conhecimentos socias e o dinheiro;

- o jovem pode sentir-se violentado - seja heterossexual, seja homossexual sintónico ou ego distónico - com esta relação, e progressivamente vivenciando um dissonância cognitiva - com forte componente afectiva, de valores e eventualmente religiosa e moral;

- o cronista social, supostamente bem relacionado, útil pois na integração do jovem no glamouroso mundo da moda, apaixona-se por ele;

- o cronista teria este hábito de ajudar jovens em ascenção no mundo em que ele próprio se movimentava com à vontade e conhecimentos;

- o cronista teria também um comportamento predador em relação a jovens com quem estabelecia relações;

- o cronista, escreveu que teria uma morte violenta e recorria aos serviços de um detective privado para avaliar as características apresentadas pelos rapazes/homens com quem se relacionava, o que indicia que nem sempre estas relações eram confiáveis;

- os dois homens passam mais tempo juntos no estrangeiro: um enlevado na relação, o outro decaíndo na sua opção de vida e de ideal do eu, cada vez mais consciente dum envolvimento que lhe acarreta sofrimento;

- o jovem recebe mensagens e telefonemas de amigas e diz a familiares que sente que está cansado da estadia naquela cidade, que não aprecia a "luxúria" que o envolve, que "a comida lhe sabe de modo diferente" ( a sensação de alteração nos sentidos é frequente em estados psicóticos);

- discussões públicas ocorrem num restaurante; no quarto do hotel outros hóspedes queixam-se de forte discussão;razões: ciúmes? revelação de que o jovem não é homossexual? dinheiro? interesses diversos entre os dois homens; nojo de algo que já não se consegue fazer, apesar de o investimento inicial estar em risco?

- o jovem é visto a sair do hotel bem vestido e diz a uma amiga que os esperava para jantar que o companheiro não sairá mais do hotel, afirmação que repete;

- a amiga preocupada chama a atenção do pessoal do hotel e o cadáver do cronista é descoberto;

- a comunicação social refere que o cronista estava irreconhecível, que o jovem o terá brutalizado durante mais de uma hora, estrangulou-o, agrediu-o com um computador, vazando-lhe os olhos com um saca-rolhas e com o mesmo objecto castrando-o;

- a comunicação social refere também que o jovem terá dito que já não era gay, que livrara o cronista da sua homossexualidade e que matara os vírus;

- desconhece-se se o homicídio foi perpetrado sob a influência de álcool, ou de drogas legais ou ilegais.

O contexto descrito é o publicamente conhecido.

As hipóteses de autópsia psicológica a colocar podem ser as seguintes:

- passagem ao acto no contexto de uma psicopatologia prévia de longo curso, com características esquizofrénicas/ psicóticas que não se havia ainda manifestado;

- psicose reactiva num contexto de depressão/ de desvalorização do ideal do eu numa personalidade profundamente narcísica que sente ter atingido os limites morais, físicos e espirituais numa relação "forçada".

No comportamento deste jovem, tal como é descrito pelos amigos e familiares, não parece ser possível identificar sinais de psicopatologia. Revela-se sim uma personalidade narcísica, com ausência de figura masculina familiar, uma preocupação com o corpo e um ideal do eu que vai sofrendo mutações a partir da participação num concurso televisivo que o transporta para o mundo fulgurante da moda.

Este momento temporal, de facto comprime o espaço e o tempo no espírito do jovem e, de certo modo, afasta-o dos valores e da vida a que se encontrava habituado. Há uma expansão de um ideal privado que encontra potencialidades de uma maior realização através do sucesso, da fama, da riqueza que o mundo da moda lhe poderia possibilitar.

O crime praticado, pela sua violência delirante de libertação, quer de si, quer do outro, indicia uma perturbação psicótica aguda reactiva a um contexto insuportável, que é destrutivo de um quadro cognitivo bem organizado e estruturado, que se vê - há aqui uma nítida sensação, ainda que errada, pelas consequências que teve para ambos os intervenientes, de clarividência e de redenção de fantasmas interiores, que se aproxima de uma fantasia orgíaca, demoníca, de libertação.

Há um processo que se inicia e que o jovem continua sem conseguir parar, num paroxismo de delírio de sangue, de punição e de redenção. 

Há nojo perante aquilo que o outro é ou aquilo que ele representa. Há repulsa e a orgia de sangue busca lavar um relacionamento que no momento que a antecedeu é precedida por um insight, que já havia sido vivenciado, mas que determinara insconscientemente a possibilidade de continuação.

Com os olhos que se vazam e o sexo que se corta, aquele corpo perde o seu simbolismo sexual e a sua vertente voyeur e demoníaca. 

Os crimes em que os olhos são objecto de mutilação são raros, mas pode existir no episódio psicótico algo de demoníaco ou de persecutório que leva o homicida a ferir os olhos da vítima. No delírio persecutório, o olhar dos outros é frequentemente fantasiado como uma perseguição.

Os olhos do outro perscrutam a alma, mesmo morto, os olhos da vítima continuam, no delírio do homicida,  a olhar e conspurcar o que vêem.

Há uma associação simbólica do olhar e da visão à vida: mesmo mortos os olhos, pelo seu brilho, parecem ver. Por algum motivo se fecham os olhos aos mortos. Porquê? Porque há uma associação da morte ao sono ou porque os vivos têm dificuldade em olhar um morto nos olhos? 

O corpo irreconhecível já é uma massa informe, já não aterroriza, não exige, nem pede afecto ou sexo, já não toca. Sem os olhos não vê o que se passa, o que se passou, não poderá continuar a perseguir.

Este crime é pois homofóbico, mata-se a homossexualidade do próprio matando o outro. De certo modo o homicídio corporiza igualmente um suicídio de uma parte do eu que exerce uma clivagem sobre o ideal do homicída.

Não se pode dizer que houve perda da consciência do acto praticado, mas a certa altura, "realizado o trabalho de higienização", devidamente maltratada a vítima (projecção de um eu momentaneamente perturbado), cortado o eixo fundamental do mal, ambos libertos física e espiritualmente de um pecado que teria que ser apaziguado, é a hora de tomar um banho, lavar as mãos, voltar a ser belo e desfilar para fora daquele cenário horrendo na direcção de um hospital.

A consciência do acto praticado não é imediata. Este jovem vai ter o seu imenso oceano de stress pós-traumático. Vai perceber, caso não descompense para uma psicose crónica ou uma esquizofrenia com manutenção ou não do delírio paranóide, frequente em personalidades de homossexuais ego-distónicos, a natureza da culpa.

O crime tê-lo-á reconciliado, em delírio,  com o seu ideal, mas crivá-lo-á de culpa, caso venha a recuperar a sua sanidade mental. Afinal os valores ligados à venda da alma e à venda do corpo, não são muito diversos dos valores ligados ao respeito pelo direito à vida, seja de quem for e daquilo que essa pessoa nos faça.

O delírio fantasista e simbólico é libertador. Com o seu delírio bizarro e desorganizado (o que indicia uma perturbação reactiva de natureza aguda e não algo meticulosamente premeditado de índole psico ou sóciopatico), este jovem livrou-se das amarras/vínculos que sentia que havia criado, quando tudo teria sido muito mais fácil se, pura e simplemente, tivesse batido com a porta, virado as costas e saído. Foi o que fez, mas depois. Deveria, caso tivesse sido capaz, tê-lo feito antes.

A punição interior está instalada. A punição do tribunal ver-se-á.

1 comentário:

  1. Parabéns, primo!!
    A melhor análise que já li acerca desta história...

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